segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Escrever



PROCESSOS de NEIL GAIMAN

(Isso é coisa antiga, veio do "Ficção em Tópicos". Copiei e colei para relembrar aqui)





Abaixo você encontra uma tradução livre de um trecho editado da entrevista que o Neil Gaiman deu para o Nerdist podcast. Ainda não escutei a entrevista inteira, que dura 1 hora e 12 minutos, mas mesmo esses 5 minutos do vídeo editado já são um minicurso para quem quer ser escritor. …


 IDEIAS E RASCUNHOS
Para mim, [escrever] sempre foi um processo de tentar me convencer de que o que estou fazendo no primeiro rascunho não é importante. Eu me lembro da sensação de liberdade incrível quando deixei de usar uma máquina de escrever e passei a usar um computador porque eu não estava mais criando pilhas de papel. Era apenas especulação, imaginação. Eu estava escrevendo essas palavras mas elas não tinham importância. Então uma década depois eu me lembro da sensação de liberdade novamente quando pensei “eu posso escrever em blocos de anotações”. [O texto] não parecia real até que eu digitasse no computador. E uma das coisas que ainda faço é escrever em bloco de notas. Eu simplesmente escrevo a mão porque não é real. Uma forma de ultrapassar o bloqueio de escritor é se convencendo que não importa, ninguém nunca verá seu primeiro rascunho. Ninguém se importa com seu primeiro rascunho. Talvez seja isso que esteja te agonizando tanto, mas honestamente, o que quer que você esteja fazendo pode ser consertado. Você pode consertar amanhã, na semana seguinte. Por agora, simplesmente coloque as palavras para fora da sua cabeça, apenas registre a história da forma como você conseguir e então conserte ela depois.

INSPIRAÇÃO
 Se você só escreve quando está inspirado, talvez você seja um bom poeta, mas você nunca será um romancista, porque você precisa atingir sua meta de palavras a cada dia. E essas palavras não vão esperar que você decida se está inspirado ou não. Então você deve escrever quando não está inspirado. E você tem que escrever as cenas que não inspiram você. E o mais estranho é que 6 meses ou 1 ano mais tarde você vai olhar para elas e não vai se lembrar quais cenas escreveu porque estava inspirado ou simplesmente escreveu porque era a cena seguinte da história.

PROCESSO
O processo de escrita pode ser mágico. Há momentos em que você dá um passo para fora da janela e caminha no ar e é uma felicidade extrema. Acima de tudo, é um processo de colocar uma palavra após a outra. Na Inglaterra e na Escócia, existem pessoas que fazem muros de pedras seca. E eles tem feito muros de pedra seca por gerações. E eles fazem esses muros com varias pedras. Eles colocam uma, depois colocam outra que se encaixa, e mais outra que se encaixa… eles sabem o que fazer. E de alguma forma eles criam esses muros que são absolutamente estáveis. Simplesmente colocando uma pedra após a outra e eventualmente você tem um muro. E é assim que você cria uma história. Você coloca uma palavra depois da outra e depois você repete.

GÊNEROS
 Quando as pessoas me dizem “eu quero ser um escritor, o que preciso fazer?”, e eu digo “você tem que escrever”. As vezes elas me dizem “eu já estou fazendo isso, o que mais preciso fazer?” e eu digo “você tem que terminar seus textos”. É assim que você aprende. Você aprende terminando textos. Exitem outros conselhos, tem tantos conselhos que se pode dar a para escritores iniciantes, particularmente para escritores que querem trabalhar com determinados gêneros. Leia o gênero que você quer escrever para ver o que outros escritores estão fazendo. Depois, leia fora da sua zona de conforto. Se você ama um certo tipo de filme e você quer fazer triller de ação para Hollywood , assista outros tipos de filme. Assista a documentários. Conheça outras referências, encontre tudo que você puder. Se você gosta de livros e você gosta de fantasia, e você quer ser o próximo Tolkien não leia apenas fantasias parecidas com as histórias de Tolkien. O Tolkien não leu fantasias parecidas com as histórias de Tolkien. Ele leu livros em finologia finlandesa. Você deve ler fora da sua zona de conforto, vai aprender sobre coisas diferentes.

ESTILO
 E o [conselho] mais importante para qualquer pessoa que atinge um certo nível de qualidade [...] é conte sua história. Não tente contar as histórias que outras pessoas podem contar. Porque qualquer escritor iniciante vai começar escrevendo com as vozes de outras pessoas. Você vem lendo outras pessoas por anos, você vai contar as coisas que você vem fazendo, mas assim que possível, comece a contar as histórias que só você pode contar. Porque sempre vão haver escritores melhores que você, mais inteligentes que você. E sempre vão existir escritores melhores nisso ou naquilo. Mas você é o único você. Tem escritores melhores que eu por aí, existem escritores mais inteligentes, pessoas que conseguem criar enredos melhores, etc, mas não existe ninguém que consegue escrever uma história do Neil Gaiman como eu.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Escrever



"TIQUES E TAQUES", por Marcelo Coelho na Folha. Crítica do filme "Boyhood"

"Qual seria a história mais simples do mundo? Ou, para modificar um pouco a pergunta, qual o modelo de enredo mais básico que se pode imaginar?

Para o crítico literário sir Frank Kermode (1919-2010), a resposta poderia bem ser o tique-taque de um relógio. O tique, escrevia ele em "The Sense of an Ending", corresponde "a uma humilde gênese", e o taque, "a um débil apocalipse".

Claro: na alternância desses dois ruídos, há um começo e um fim. Isso todo mundo pode ver, ou melhor, pode ouvir. O mais interessante não está no som que o relógio "objetivamente" produz.

Com alguma honestidade, poderíamos reconhecer que o barulho do relógio é apenas "tique-tique"; a batida é sempre igual.

Se chamamos isso de "tique-taque", é porque já estamos inventando uma historiazinha para o nosso relógio; já produzimos uma forma, extremamente elementar, sem dúvida, de ficção.

Mais ainda, essa "narrativa" tem um sentido. Por mais vago que seja o "conteúdo" dessa sequência de ruídos, sabemos o que esperar: sabemos que depois de um "tique" deve vir o "taque".

Kermode usa o exemplo para mostrar que uma história, um romance –e mesmo a nossa própria vida– não podem se resumir a uma sucessão temporal. Um dia depois do outro, um tique e outro tique em seguida, não levam a lugar nenhum.

O "sentido" da história exige um mínimo de ficção, de imaginação, de propósito, para que não se esgote na mera passagem mecânica do tempo. A ficção humaniza, e dá forma, ao escoar desorganizado dos instantes e dos dias.

Ou, como diz Kermode lindamente, o romancista é sempre um "herdeiro de dom Quixote, inclinando-se na sua cavalaria desesperada contra os invariáveis moinhos de vento de uma realidade submissa ao tempo cronológico".

Resumindo, a mera realidade do dia a dia, sem projeto, sem ficção, perde o sentido –e foi mais ou menos isso o que eu estava dizendo quando reclamei do filme "Boyhood", no artigo da semana passada.

Por mais fiel que seja à realidade de um adolescente americano, "Boyhood" não convence, porque ninguém, na vida real, é tão "real" assim.

Somos todos personagens de nós mesmos: contribuímos com nossas invenções, nossas ilusões, nossos projetos, para construir o que somos de fato. Sem essa ficção, seríamos apenas fantasmas cronológicos, arrastando atrás de nós as correntes do calendário.

Elaboro do meu jeito o que estou lendo num livro ao mesmo tempo audacioso e cheio de bom senso, escrito pelo ensaísta e antigo colaborador do jornal "O Estado de S. Paulo", Gilberto de Mello Kujawski.
Chama-se (apenas!) "O Sentido da Vida", e sai agora em segunda edição revista pela editora Migalhas.



"Não, a vida não tem nenhum sentido", começa o autor. "A vida não tem lógica, acontece a esmo, sempre imprevisível, sem nenhum traço de racionalidade."
Como faz bem (a mim, pelo menos), topar com afirmações tão claras e corajosas logo na abertura de um livro assim... É como se abríssemos a janela para deixar entrar um vento de inverno -de que estamos mais precisados do que nunca nestes dias.

Mas é claro que Kujawski não se limita a esse efeito de choque –e logo estaremos admitindo, junto com o autor, a presença de seu velho mestre, o filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955).

Com muita clareza, "O Sentido da Vida" mostra o quanto já havia de "sartreano" nas primeiras obras de Ortega y Gasset –incluindo-se aí a famosa noção de que o ser humano "está condenado à liberdade". Mais importante ainda é a ideia de "projeto".

Não se trata, é claro, de um mero "capricho": posso desejar ardentemente ser um grande pianista, mas não serei capaz de inventar um Marcelo-pianista que não sou.

Ao mesmo tempo, para viver a própria vida, é preciso construí-la. "A vida nos é dada", diz Kujawski, "mas não nos é dada feita".

Desse modo, completa o autor, inventamos, dia a dia, o que vamos ser. Mas essa frase seria algo banal (e também irrealista), não fosse um adendo importantíssimo. Essa invenção se dá conforme aquilo que somos.
Uma pessoa tem (muito teoricamente) a liberdade de ser qualquer coisa –mas o que importa é que ela se transforme naquilo que tem de ser.

Mal comparando, isso deveria ser tão fácil quanto cada um ter sua própria voz. Mas sabemos, infelizmente, o quanto estamos à mercê de uma dublagem constante, que nos ensurdece para nós mesmos."

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

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Ursula Le Guin




"What distinguishes experience from imagination in writing and is one more essential to the process of writing than the other?

Well, imagination is based on experience. The way everything in the world is made out of the elements combined in endless ways, everything in the mind is made out of bits of experienced reality combined in endless ways. So a child’s imagination deepens with living, with wider experience of reality. And so does a writer’s. But the imagination needs training in how to combine, how to invent, how to understand, just as much as the thinking mind does. We get that training mostly by reading and writing fiction and poetry."



O resto da entrevista AQUI.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Escrever

Tipologia do Escritor,
por Luiz Bras



"Para ele (Ezra Pound), os escritores dividiam-se em seis categorias: a dos inventores, a dos mestres, a dos diluidores, a dos bons escritores sem qualidades salientes, a dos beletristas e a dos lançadores de moda.

1. Inventores: escritores que descobrem um novo processo literário ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de determinado processo literário, rompendo com as convenções. Originalidade é o adjetivo mais usado pela crítica especializada ao analisar a obra desses gênios.


2. Mestres: escritores que combinam certas características dos tais processos mencionados acima e as usam tão bem ou melhor do que os inventores. Um pouco mais fácil do que criar um processo absolutamente original é fazer uso do processo criado por um inventor. Por isso mesmo, muitos mestres conseguem usar determinado processo com muito mais desenvoltura do que o inventor que o criou.


3. Diluidores: escritores que absorvem certas idéias dos inventores e dos mestres, mas não são capazes de realizar tão bem o trabalho literário. Daqui pra baixo o adjetivo originalidade será pouquíssimo usado. Mesmo que a obra dos diluidores pareça algo original para a maioria dos leitores, isso significa apenas que esses leitores, por falta de familiaridade com a cultura mais sofisticada, jamais tiveram acesso à obra dos inventores e dos mestres.


4. Bons escritores sem qualidades salientes: escritores que se mantêm dentro das convenções, sem se preocuparem com as grandes questões literárias. A grande maioria dos escritores conhecidos e desconhecidos.


5. Beletristas: escritores que não inventaram nada nem aprimoraram nada, mas se especializaram em determinada particularidade da arte de escrever.



6. Lançadores de moda: escritores que trabalham apenas com o gosto médio dos leitores e se mantêm na moda por algum tempo, mesmo que esse tempo seja razoavelmente longo."

http://rascunho.gazetadopovo.com.br/tipologia-do-escritor/

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Escrever




"Todo mundo tem um livro na cabeça. Quase ninguém tem um segundo"


...[Muitos livros] não justificam a própria existência. Toni Morrison dizia que escrevia para preencher um espaço vazio nas estantes. Há alguns tipos de livros que deveriam estar sendo escritos, mas não sabemos quais são até o momento em que lemos um deles. Infelizmente (diz Mark Sarvas) muitos escritores escrevem por escrever, escrevem para ter um livro publicado, mas chega a parecer que o texto em si, aquilo que estão escrevendo, é uma peça menor nesse processo.


(Bráulio Tavares elenca os principais erros e problemas de autores estreantes, segundo Mark Sarvas. AQUI Ó. A frase cruel foi retirada da série Affair)






Um dos blogs literários que costumo ler é o ótimo The Elegant Variation, de um californiano chamado Mark Sarvas.  Dicas interessantes, ótimas entrevistas, mil idéias sobre literatura.  Numa postagem recente, ele explica que como jurado de um concurso para “Romancista Estreante” teve que ler uma grande quantidade de romances de estréia de jovens autores.  Anotou alguns dos defeitos mais frequentes, que vêm abaixo.

1) Tentar incluir coisas demais. O autor quer, no seu primeiro livro, abordar e resolver todos os problemas e fenômenos sociais do mundo. Conselho: Tudo bem em ser ambicioso, mas não queira ser um Atlas logo na primeira tentativa. 2) Não incluir muitas coisas. Estamos vivendo a apoteose da microliteratura, focalizada em detalhes mínimos e quase sem eventos a relatar. Tem gente demais estreando com romances-de-uma-idéia-só. 3) Achar que basta uma voz narrativa excêntrica para segurar o leitor de um romance. Vozes assim são bem vindas, mas muitas vezes toda a energia do autor é gasta em tentar manter essa voz, esquecendo de produzir outras coisas interessantes (ou então confiando que a voz irá distrair o leitor dessas ausências).

4) São muito coloquiais. Livros que a todo instante fazem referências a minúcias do cotidiano, coisas que muito em breve ficarão datadas. Um romance não é um bate-papo de mesa de bar. 5) São formais em excesso. O defeito oposto: muitos livros parecem ter sido escritos em outra época, de tão cintura-dura, formais, anacrônicos. Ou, o que é pior, parecem estar obedecendo religiosamente, item por item, algum Manual de Como Escrever Romances. 6) Começam com força total mas vão definhando ao longo do trajeto. São como maratonistas que disparam na frente, ébrios de triunfo, apenas para serem ultrapassados, perto do fim da prova, por competidores que souberam dosar melhor suas energias. Muitos livros desabam de vez no final, ou então vão se desorientando e se perdendo como se o autor não soubesse mais o que fazer com sua história.

7) São demasiado reconhecíveis. A gente abre dez livros e reencontra ali os mesmos relacionamentos, as mesmas situações vividas pelas mesmas pessoas das mesmas classes sociais. 8) Eles não justificam a própria existência. Toni Morrison dizia que escrevia para preencher um espaço vazio nas estantes. Há alguns tipos de livros que deveriam estar sendo escritos, mas não sabemos quais são até o momento em que lemos um deles. Infelizmente (diz Mark Sarvas) muitos escritores escrevem por escrever, escrevem para ter um livro publicado, mas chega a parecer que o texto em si, aquilo que estão escrevendo, é uma peça menor nesse processo.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Escrever

Kurt Vonnegut via Sergio Augusto



"Garanto a você que nenhum esquema narrativo moderno, nem mesmo a ausência de enredo, dará ao leitor satisfação genuína, a menos que uma daquelas tramas à moda antiga seja contrabandeada para dentro da história. Não defendo a trama como representação acurada da vida, mas como forma de manter o leitor lendo. Quando eu dava aulas de criação literária, costumava recomendar aos estudantes que fizessem seus personagens desejar alguma coisa imediatamente – mesmo que apenas um copo d’água. Personagens paralisados pela ausência de sentido da vida moderna ainda precisam beber água de vez em quando. Um dos meus alunos escreveu um conto sobre uma freira que ficou com um pedaço de fio dental preso entre os molares inferiores e não conseguia se livrar dele o dia inteiro. Achei isso maravilhoso. A história lidava com questões muito mais importantes do que fios dentais, mas o que mantinha os leitores presos era a ansiedade de saber quando o fio dental seria finalmente removido. Era impossível ler aquele conto sem sentir um incômodo entre os dentes. (…) Se você exclui a trama, se elimina o desejo de alguém por alguma coisa, você exclui o leitor, o que é uma coisa muito feia de fazer."


Não sei se a última frase, com sua generalização implacável, estará correta: há leitores de todo tipo e alguns deles devem sentir prazer com histórias (vamos manter a palavra, à falta de outra) absolutamente destituídas de conflito, desejo ou mesmo personagens, blocos de arte conceitual em que tudo o que se passa na página ocorre num plano meramente formal. Excluir essa possibilidade também seria um erro: se a literatura for alguma coisa, será o reino da liberdade autoral absoluta.

O que acredito que Vonnegut quis dizer é que, ao eliminar o personagem e seu desejo por algo que ele não tem – condições básicas para se estabelecer com o leitor um pacto narrativo de suspense e, por fim, (in)satisfação –, a literatura exclusivamente conceitual deixa ao relento uma imensa maioria de leitores. Isso me parece inquestionável e não vale apenas para o realismo: nada impede que, em vez de um copo d’água, o personagem deseje com ardor e acabe conseguindo, sei lá, cavalgar um unicórnio ou se transportar para dentro de um videogame.

Uma rápida consulta às listas dos livros mais vendidos, quase todos feitos de trama pura ou quase isso, basta para comprovar o que foi dito acima. O que complica a questão é que essa preferência popular tão categórica pela contação de histórias leva muita gente – sobretudo críticos, mas também escritores – a menosprezar o enredo, o entrecho, a intriga, o mistério, a surpresa como ferramentas menores da literatura, recursos identificados com o lado ingênuo ou menos sério da arte. Algo que deve ser eliminado ou, no mínimo, não sendo merecedor de grande atenção, resolvido rápida e porcamente a fim de deixar o terreno livre para o que de fato importa – seja lá o que isso for. Não duvido que em tal erro de julgamento resida parte da explicação para que as listas de mais vendidos do início deste parágrafo estejam há anos tão melancolicamente despovoadas de brasileiros.

A ideia de “contrabando” sugerida por Vonnegut me parece uma estratégia artística mais inteligente. Aquela freira às voltas com seu fio dental torturante pode ter vivido ao longo do conto, que não nos é dado conhecer, todo tipo de conflito casca-grossa – teológico, sexual, linguístico, cognitivo, o diabo –, mas o leitor se veria menos disposto a acompanhá-la em tais profundezas se não estivesse preso à história pelo fio prosaico que ela traz entre os dentes. Estamos diante de um inequívoco MacGuffin.

Termo mais conhecido pela turma do cinema, MacGuffin é uma palavra popularizada por Alfred Hitchcock para designar aquele elemento da história que impulsiona a ação dos personagens e que, no fim das contas, descobrimos não ter tanta importância assim, pois o verdadeiro foco da narrativa era outro. O que vale para o cinema e a TV vale também para a literatura – ou para qualquer forma de contar histórias. Não por acaso, um MacGuffin clássico é a estatueta que dá título ao romance “O falcão maltês”, de Dashiell Hammett, e também ao filme de John Huston nele baseado (batizado de “Relíquia macabra” no Brasil). Descobrimos perto do fim que a preciosidade em nome da qual tanto sangue foi derramado é falsa, mas isso já não tem muita importância.

Uma boa frase de autoria duvidosa, popularizada por John Lennon na canção Beautiful boy, sustenta que “vida é aquilo que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos”. Pois história – ou pelo menos um tipo bastante interessante de história – é aquilo que acontece enquanto estamos ocupados imaginando o que será feito do MacGuffin. Nesse meio tempo pode acontecer nas páginas o que o autor quiser ou puder fazer acontecer, inclusive a arte literária mais rigorosa e exigente. Com a vantagem de que, nesse caso, o leitor vem junto.

sábado, 20 de junho de 2015

Escrever

Lugar-comum, Gregório Duvivier



"
Algumas palavras são casadas. A palavra caudaloso, por exemplo, tem união estável com a palavra rio -você dificilmente verá caudaloso andando por aí acompanhada de outra pessoa. O mesmo vale para frondosa, que está sempre com a árvore. Perdidamente, coitado, é um advérbio que só adverbia o adjetivo apaixonado. Nada é ledo a não ser o engano, assim como nada é crasso a não ser o erro. Ensejo é uma palavra que só serve para ser aproveitada. Algumas palavras estão numa situação pior, como calculista, que vive em constante ménage, sempre acompanhada de assassino, frio etc.

Algumas palavras dependem de outras, embora não sejam grudadas por um hífen -quando têm hífen elas não são casadas, são siamesas. Casamento acontece quando se está junto por algum mistério. Alguns dirão que é amor, outros dirão que é afinidade, carência, preguiça e outros sentimentos menos nobres (a palavra engano, por exemplo, só está com ledo por pena -sabe que ledo, essa palavra moribunda, não iria encontrar mais nada a essa altura do campeonato).

Esse é o problema do casamento entre as palavras, que por acaso é o mesmo do casamento entre pessoas. Tem sempre uma palavra que ama mais. A palavra árvore anda com várias palavras além de frondosa. O casamento é aberto, mas para um lado só. A palavra rio sai com várias outras palavras na calada da noite: grande, comprido, branco, vermelho -e caudaloso fica lá, sozinho, em casa, esperando o rio chegar, a comida esfriando no prato.

Um dia, caudaloso cansou de ser maltratado e resolveu sair com outras palavras. Esbarrou com o abraço que, por sua vez, estava farto de sair com grande, essa palavra tão gasta. O abraço caudaloso deu tão certo que ficaram perdidamente inseparáveis. Foi em Manuel de Barros. Talvez pra isso sirva a poesia, pra desfazer ledos enganos em prol de encontros mais frondosos.
"

VIA Abraço Caudaloso, na Folha.

domingo, 17 de maio de 2015

Escrever



Isto é café frio, gelado talvez, sei bem, mas foda-se: continua sendo bom.

É menos sobre Escrever e mais sobre viver de Escrever (ou de qualquer outra Arte).

Discurso de Neil Gaiman para os formandos da University of the Arts, na Filadelfia, Estados Unidos.Tradução é daqui.


17 de Maio de 2012

Eu nunca real­mente espe­rei me encon­trar dando con­se­lhos para pes­soas se gra­du­ando em um esta­be­le­ci­mento de ensino supe­rior. Eu nunca me gra­duei em um des­ses esta­be­le­ci­men­tos. E nunca nem come­cei um. Eu esca­pei da escola assim que pude, quando a pers­pec­tiva de mais qua­tro anos de apren­di­za­dos for­ça­dos antes que eu pudesse me tor­nar o escri­tor que dese­java ser era sufocante.

Eu saí para o mundo, eu escrevi, eu me tor­nei um escri­tor melhor na medida em que escre­via mais, e eu escrevi um pouco mais, e nin­guém nunca pare­cia se impor­tar que eu estava inven­tando na medida em que eu pros­se­guia, eles sim­ples­mente liam o que eu escre­via e paga­vam por isso, ou não, e fre­quen­te­mente eles me enco­men­da­vam alguma outra coisa pra eles.
O que me dei­xou com um sau­dá­vel res­peito e admi­ra­ção pela edu­ca­ção supe­rior do quais meus ami­gos e fami­li­a­res, que fre­quen­ta­ram uni­ver­si­da­des, se cura­ram há muito tempo atrás.
Olhando para trás, eu tri­lhei uma cami­nhada memo­rá­vel. Não tenho cer­teza de que posso chamá-la de uma car­reira, por­que uma car­reira implica que eu tivesse algum tipo de plano de car­reira, e eu nunca tive. A coisa mais pró­xima que tive foi uma lista que fiz quando tinha 15 anos com tudo que eu que­ria fazer: escre­ver um romance para adul­tos, um livro infan­til, uma revista em qua­dri­nhos, um filme, gra­var um audi­o­book, escre­ver um epi­só­dio de Dr. Who… e assim por diante. Eu não tive uma car­reira. Eu sim­ples­mente fui fazendo a pró­xima coisa da lista.
Então pen­sei em con­tar para vocês tudo que eu gos­ta­ria de saber de saída, e algu­mas coi­sas que, olhando para trás pra isso, supo­nho que eu sabia. E tam­bém em dar o melhor con­se­lho que já recebi, o qual falhei com­ple­ta­mente em seguir.

O pri­meiro de todos: Quando você começa em uma car­reira nas artes você não tem ideia do que está fazendo.
Isso é ótimo. As pes­soas que sabem o que estão fazendo conhe­cem as regras, e sabem o que é pos­sí­vel e o que é impos­sí­vel. Vocês não. E vocês não devem. As regras sobre o que é pos­sí­vel e impos­sí­vel nas  artes foram fei­tas por pes­soas que não tinham tes­tado os limi­tes do pos­sí­vel indo além deles. E vocês podem.
Se vocês não sabem que é impos­sí­vel é mais fácil fazer. E por­que nin­guém fez antes, não inven­ta­ram regras para evi­tar que alguém faça de novo, ainda.

Em segundo, se você tem uma ideia do que você quer fazer, sobre o que você foi colo­cado aqui para fazer, então sim­ples­mente vá e faça aquilo.
E isso é muito mais difí­cil do que parece e, algu­mas vezes, no fim, muito mais fácil do que você pode­ria imaginar.
Porque nor­mal­mente, há coi­sas que você pre­cisa fazer antes de que você possa che­gar aonde quer estar. Eu que­ria escre­ver qua­dri­nhos e roman­ces e his­tó­rias e fil­mes, então me tor­nei um jor­na­lista, por­que jor­na­lis­tas têm per­mis­são para fazer per­gun­tas, e para sim­ples­mente ir adi­ante e des­co­brir como o mundo fun­ci­ona, e, além disso, para fazer essas coi­sas eu pre­ci­sa­ria escre­ver e escre­ver bem, e eu estava sendo pago para apren­der como escre­ver eco­no­mi­ca­mente, cla­ra­mente, às vezes em con­di­ções adver­sas, e em tempo.
Algumas vezes o cami­nho para fazer o que você espera fazer estará cla­ra­mente deli­ne­ado; e às vezes será quase impos­sí­vel deci­dir se você estará ou não fazendo a coisa certa, por­que você terá de balan­cear suas metas e espe­ran­ças, e alimentar-se, pagar as con­tas, encon­trar tra­ba­lho, e se ade­quar ao que pode encontrar.
Uma coisa que fun­ci­o­nou para mim foi ima­gi­nar que onde eu gos­ta­ria de estar – um autor, prin­ci­pal­mente de fic­ção, fazendo bons livros, fazendo bons qua­dri­nhos e me man­tendo atra­vés de minhas pala­vras – era uma mon­ta­nha. Uma mon­ta­nha dis­tante. Minha meta.
E eu sabia que enquanto eu me man­ti­vesse andando em dire­ção à mon­ta­nha eu esta­ria bem. E quando eu ver­da­dei­ra­mente não estava certo acerca do que fazer, eu podia parar, e pen­sar se aquilo estava me levando em dire­ção à mon­ta­nha ou me afas­tando dela. Eu disse não para tra­ba­lhos edi­to­ri­ais em revis­tas, tra­ba­lhos ade­qua­dos que teriam pago um dinheiro res­pei­tá­vel por­que eu sabia que, por mais  atra­ti­vos que fos­sem, para mim eles esta­riam me dei­xando mais dis­tante da mon­ta­nha. E se essas ofer­tas tives­sem apa­re­cido mais cedo tal­vez as tivesse aceito, por­que elas ainda me dei­xa­riam mais perto da mon­ta­nha do que eu estava à época.
Eu aprendi a escre­ver escre­vendo. Eu ten­dia a fazer qual­quer coisa con­quanto que pare­cesse uma aven­tura, e a parar de fazê-la quando pare­cia tra­ba­lho, o que sig­ni­fi­cou que a vida não se pare­cia com trabalho.


Ter­ceiro, quando você começa, você pre­cisa lidar com os pro­ble­mas do fra­casso. Vocês pre­ci­sam ser osso duro de roer, pre­ci­sam apren­der que nem todo pro­jeto sobre­vi­verá. Uma vida como fre­e­lan­cer, uma vida nas artes, é mui­tas vezes como colo­car men­sa­gens em gar­ra­fas, em uma ilha deserta, e espe­rar que alguém encon­tre uma de suas gar­ra­fas, e a abra, leia, e colo­que algo em outra gar­rafa que fará seu cami­nho de volta até você: apreço, ou uma enco­menda, dinheiro, ou amor. E vocês têm de acei­tar que vocês pode­rão lan­çar uma cen­tena de coi­sas para cada gar­rafa que apa­re­cerá retornando.
Os pro­ble­mas do fra­casso são pro­ble­mas de desen­co­ra­ja­mento, de deses­pero, de ansi­e­dade. Você deseja que tudo acon­teça e você quer que as coi­sas acon­te­çam agora, e as coi­sas dão errado. Meu pri­meiro livro – uma peça de jor­na­lismo que tinha feito pelo dinheiro, e que já tinha me com­prado uma máquina de escre­ver ele­trô­nica do adi­an­ta­mento – deve­ria ter sido um best­sel­ler. Deveria ter me pagado muito dinheiro. Se a edi­tora não tivesse invo­lun­ta­ri­a­mente ido à ban­car­rota entre a pri­meira impres­são se esgo­tar e a segunda sair, e antes que quais­quer direi­tos pudes­sem ser pagos, ele teria me dado muito dinheiro.
E eu dei de ombros, eu ainda tinha minha máquina de escre­ver ele­trô­nica e dinheiro o bas­tante para pagar o alu­guel por um par de meses, e decidi que eu faria o meu melhor para no futuro não escre­ver  livros ape­nas pelo dinheiro. Se você não ganha o dinheiro, então você não tem nada. Se eu fizesse um tra­ba­lho do qual me orgu­lhasse, e não ganhasse a grana, ao menos eu teria o trabalho.
De vez em quando, eu esqueço essa regra, e sem­pre que o faço, o uni­verso me bate com força e me relem­bra dela.
Eu não sei se isso é um pro­blema para mais alguém além de mim, mas é ver­dade que nada que eu fiz na qual a única razão para fazê-lo fosse o dinheiro jamais valeu a pena, exceto como amarga expe­ri­ên­cia. Normalmente nunca dei o tra­ba­lho por encer­rado ao rece­ber o dinheiro, por outro lado. As coi­sas que fiz por­que estava empol­gado, e que­ria vê-las exis­ti­rem na rea­li­dade, nunca me decep­ci­o­na­ram, e eu nunca me arre­pendi do tempo gasto com nenhuma delas.
Os pro­ble­mas do fra­casso são difíceis.
Os pro­ble­mas do sucesso podem ser ainda mais difí­ceis, por­que nin­guém lhes avisa sobre eles.
O pri­meiro pro­blema de qual­quer tipo de sucesso limi­tado é a con­vic­ção ina­ba­lá­vel de que você está fugindo com algo, e de que a qual­quer momento irão descobri-lo. É a Síndrome do Impostor, algo que  minha esposa Amanda bati­zou de Polícia da Fraude.
Em meu caso, eu estava con­ven­cido de que have­ria uma batida na porta, e um homem com uma pran­cheta (não sei por que ele car­re­gava uma pran­cheta, em minha cabeça, mas ele car­re­gava) esta­ria lá, para me dizer que estava tudo aca­bado, e eles me pega­riam e agora eu teria de ir e con­se­guir um tra­ba­lho de ver­dade, algum que não con­sis­tisse de inven­tar coi­sas e escrevê-las, e ler livros que eu qui­sesse ler. E então eu par­ti­ria silen­ci­o­sa­mente e pega­ria o tipo de tra­ba­lho no qual você não tem de inven­tar mais coisas.
Os pro­ble­mas do sucesso. Eles são reais, e com sorte vocês irão experienciá-los. O ponto em que você para de dizer sim pra tudo, por­que agora as gar­ra­fas que você lança ao oce­ano estão todas vol­tando, e você pre­cisa apren­der a dizer não.
Eu obser­vei meus colegas e ami­gos, e aque­les que eram mais velhos que eu e obser­vei quão infe­li­zes alguns deles se sen­tiam: eu os ouvi con­tar pra mim que eles não podiam enca­rar um mundo no qual eles não podiam mais fazer o que sem­pre qui­se­ram fazer, por­que agora eles tinham de ganhar uma certa quan­ti­dade de grana todo mês ape­nas para se man­ter onde esta­vam. Eles não podiam ir e fazer as coi­sas que impor­ta­vam, e que real­mente que­riam fazer; e isso me pare­ceu uma tra­gé­dia tão grande quanto qual­quer pro­blema de fracasso.
E depois disso, o maior pro­blema do sucesso é que o mundo cons­pira para que você pare de fazer o que você faz, por­que você é famoso. Houve um dia em que olhei e me dei conta de que eu tinha me tor­nado alguém que pro­fis­si­o­nal­mente res­pon­dia a e-mails, e escre­via como um hobby. Eu come­cei a res­pon­der menos e-mails, e fiquei ali­vi­ado por per­ce­ber que estava escre­vendo muito mais.

Em quarto, eu espero que vocês come­tam erros. Se vocês estão come­tendo erros, sig­ni­fica que vocês estão por aí fazendo algo. E os erros em si podem ser úteis. Uma vez escrevi Caroline errado, em uma  carta, tro­cando o A e o O, e eu pen­sei, “Coraline parece um nome real…”
E lembrem-se que não importa a área em que este­jam, se você é um músico ou um fotó­grafo, um artista fino ou um car­tu­nista, um escri­tor, um dan­ça­rino, um desig­ner, o que quer que você faça, vocês têm algo que é único. Vocês têm a habi­li­dade de fazer arte.
E para mim, e para mui­tas das pes­soas que conheci, isso tem sido um salva-vidas. O salva-vidas defi­ni­tivo. Ele lhe leva atra­vés dos bons momen­tos e pelos outros.
A vida as vezes é dura. As coi­sas dão errado, na vida e no amor e nos negó­cios e nas ami­za­des e na saúde e em todos os outros modos que a vida pode dar errado. E quando as coi­sas ficam difí­ceis, isso é o que vocês devem fazer.
Façam boa arte.
Eu estou falando sério. O marido fugiu com uma política(o)? Faça boa arte. Perna esma­gada e depois devo­rada por uma jibóia mutante? Faça boa arte. Imposto de renda te ras­tre­ando? Faça boa arte. Gato explo­diu? Faça boa arte. Alguém na inter­net pensa que o que você faz é estú­pido ou mau ou já foi feito antes? Faça boa arte. Provavelmente as coi­sas se resol­ve­rão de algum modo, e even­tu­al­mente o tempo levará a dor mais aguda, mas isso não importa. Faça ape­nas o que você faz de melhor.  Faça boa arte.
Faça-a nos dias bons também.


E, em quinto: Enquanto esti­ve­rem nisso, façam a sua arte. Façam as coi­sas que só vocês podem fazer.
O impulso inicial é copiar. E isso não é uma coisa ruim. A mai­o­ria de nós só des­co­bre nos­sas pró­prias vozes depois de ter­mos soado como um monte de outras pes­soas. Mas uma coisa que você tem que nin­guém mais tem é você. Sua voz, sua mente, sua estó­ria, sua visão. Então escreva e dese­nhe e cons­trua e toque e dance e viva como só você pode viver.
No momento em que você sen­tir que, pos­si­bi­li­dade, você está andando na rua nu, expondo muito de seu cora­ção e de sua mente e do que existe em seu inte­rior, mos­trando demais de si mesmo. Esse é o momento em que você pode estar come­çando a acertar.
As coi­sas que fiz que mais fun­ci­o­na­ram foram as coi­sas das quais menos estava certo, as estó­rias as quais eu tinha cer­teza de que ou fun­ci­o­na­riam, ou, mais pro­va­vel­mente, seriam o tipo de fra­casso emba­ra­çoso que as pes­soas se jun­tam para falar a res­peito até o fim dos tem­pos. Elas sem­pre tive­ram isso em comum: olhando para em retros­pec­tiva para elas, as pes­soas expli­cam por­que foram suces­sos ine­vi­tá­veis. Enquanto as estava fazendo, eu não tinha ideia.
E ainda não tenho. E onde esta­ria a graça de fazer alguma coisa que você sou­besse que iria funcionar?
E às vezes as coi­sas que fiz real­mente não fun­ci­o­na­ram. Há estó­rias minhas que nunca foram reim­pres­sas. Algumas delas nunca sequer saí­ram da casa. Mas eu aprendi com elas tanto quando aprendi com as coi­sas que funcionaram.


Sexto. Eu pas­sa­rei algum conhe­ci­mento secreto de fre­e­lan­cer. Conhecimento secreto é sem­pre bom. E é útil para qual­quer um que alguma vez já pla­ne­jou criar arte para outras pes­soas, em entrar em um mundo de fre­e­lance de qual­quer tipo. Eu aprendi isso com os qua­dri­nhos, mas se aplica a outros cam­pos tam­bém. E é isto:
As pes­soas são con­tra­ta­das por­que, de algum modo, elas são con­tra­ta­das. Em meu caso eu fiz algo que atu­al­mente seria fácil de che­car, e me colo­ca­ria em pro­ble­mas, e quando eu come­cei, naque­les dias pré-internet, pare­cia uma estra­té­gia de car­reira sen­sata: quando edi­to­res me per­gun­ta­vam para quem eu já tinha tra­ba­lhado, eu men­tia. Eu lis­tei uma série de revis­tas que soa­vam razoá­veis, e soei con­fi­ante, e con­se­gui os empre­gos. Então trans­for­mei em uma ques­tão de honra con­se­guir escre­ver algo para cada uma das revis­tas que eu lis­tei para con­se­guir aquele pri­meiro emprego, de modo que eu não menti de fato, só fui cro­no­lo­gi­ca­mente desa­fi­ado… Você começa a tra­ba­lhar por qual­quer maneira que comece a trabalhar.
As pes­soas se mantêm tra­ba­lhando, em um mundo de fre­e­lan­ces, e mais e mais do mundo de hoje é fre­e­lance, por­que seu tra­ba­lho é bom, e por­que são fáceis de con­vi­ver, e por­que elas entre­gam o tra­ba­lho em tempo. E você nem pre­cisa de todos os três. Dois em três está bem. As pes­soas irão tole­rar quão desa­gra­dá­vel você é se seu tra­ba­lho for bom e você o entre­gar no prazo. Elas per­do­a­rão o atraso do tra­ba­lho se ele for bom, e elas gos­ta­rem de você. E você não pre­cisa ser tão bom quanto os outros se você é pon­tual e é sem­pre um pra­zer ouvi-lo(a).
Quando con­cor­dei em fazer este dis­curso, eu come­cei ten­tando pen­sar em qual tinha sido o melhor con­se­lho que já tinha rece­bido ao longo dos anos.
E ele veio do Stephen King, há vinte anos atrás, no auge do sucesso de Sandman. Eu estava escre­vendo um qua­dri­nho que as pes­soas ama­vam e esta­vam levando a sério. King gos­tara de Sandman e de meu romance com Terry Pratchett, Belas Maldições (Good Omens), e ele viu a lou­cura, as lon­gas filas de autó­gra­fos, tudo aquilo, e seu con­se­lho foi esse:
“Isso é real­mente ótimo. Você deve­ria apre­ciar isso.”
E eu não apro­vei­tei. O melhor con­se­lho que já recebi que igno­rei. Ao invés disso, eu me pre­o­cu­pei com aquilo. Eu me pre­o­cu­pei com o pró­ximo prazo, a pró­xima ideia, a pró­xima estó­ria. Não houve um momento nos pró­xi­mos qua­torze ou quinze anos em que não esti­vesse escre­vendo algo em minha cabeça, ou ima­gi­nando a res­peito. E eu não parei e olhei em redor e pen­sei, isso é real­mente diver­tido. Eu que­ria ter apro­vei­tado mais. Tem sido uma cami­nhada incrí­vel. Mas houve par­tes da tri­lha que eu perdi, por­que estava muito pre­o­cu­pado em as coi­sas darem errado, sobre o que viria depois, para apre­ciar a parte em que estava.
Essa foi a lição mais difí­cil pra mim, eu acho: rela­xar e cur­tir a cami­nhada, por­que a jor­nada o leva a alguns luga­res memo­rá­veis e inesperados.
E aqui, nesta pla­ta­forma, hoje, é um des­tes luga­res. (E eu estou cur­tindo isso imensamente.)
Para todos os gra­du­an­dos de hoje: eu desejo a vocês sorte. Sorte é útil. Frequentemente vocês des­co­bri­rão que quanto mais duro vocês tra­ba­lha­rem, e mais sabi­a­mente, mais sor­tu­dos vocês serão. Mas existe sorte, e ela ajuda.
Nós esta­mos em um mundo em tran­si­ção neste momento, se vocês estão em qual­quer campo artís­tico, por­que a natu­reza da dis­tri­bui­ção está mudando, os mode­los pelos quais os cri­a­do­res entre­ga­vam seu  tra­ba­lho ao mundo, e con­se­guiam man­ter um teto sobre suas cabe­ças e com­prar alguns san­duí­ches enquanto faziam isso, estão todos mudando. Eu falei com pes­soas do topo da cadeia ali­men­tar em publi­ca­ções, ven­das de livros, em todas essas áreas, e nin­guém sabe com o que a pai­sa­gem se pare­cerá daqui a dois anos, que dirá daqui a uma década. Os canais de dis­tri­bui­ção que as pes­soas cons­truí­ram ao longo do último século ou mais estão con­tí­nua mudança, para os impres­sos, para artis­tas visu­ais, para músi­cos, para pes­soas cri­a­ti­vas de todos os tipos.
O que é, por um lado, inti­mi­dante e, por outro, imen­sa­mente liber­ta­dor. As regras, as supo­si­ções, os agora nós deve­mos fazer de como você con­se­gue expor seu tra­ba­lho, e o que você faz a seguir, estão ruindo. Os por­tei­ros estão dei­xando seus por­tões. Vocês podem ser tão cri­a­ti­vos quanto pre­ci­sa­rem para con­se­guir visi­bi­li­dade para seus tra­ba­lhos. YouTube e a web (e o que quer que venha depois do YouTube e da web) podem dar a vocês mais pes­soas de audi­ên­cia do que a tele­vi­são jamais deu. As velhas regras estão des­mo­ro­nando e nin­guém sabe quais são as novas regras.
Então inven­tem suas pró­prias regras.
Alguém recen­te­mente me per­gun­tou como fazer alguma coisa que ela achava que seria difí­cil, em seu caso, gra­var um audi­o­book, e eu sugeri que ela fin­gisse que ela era alguém que pode­ria fazê-lo. Não fin­gir fazê-lo, mas fin­gir que era alguém que podia fazer. Ela colo­cou uma nota para este efeito na parede do estú­dio, e disse que isso ajudou.
Então sejam sábios, por­que o mundo neces­sita de mais sabe­do­ria, e se vocês não pude­rem ser sábios, fin­jam ser alguém que é sábio, e então ape­nas se com­por­tem como eles se comportariam.
E agora vão, e come­tam erros inte­res­san­tes, come­tam erros mara­vi­lho­sos, façam erros glo­ri­o­sos e fan­tás­ti­cos. Quebrem regras. Façam do mundo um lugar mais inte­res­sante por vocês esta­rem aqui.
Façam boa arte.


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Escrever



(Outro bom site cheio de dicas e inspirações, o Brain Pickings. Nesse link, Samuel R.Delany definiu algumas diferenças entre Boa Escrita e a Escrita Talentosa)

Though they have things in common, good writing and talented writing are not the same.
[…]
 If you start with a confused, unclear, and badly written story, and apply the rules of good writing to it, you can probably turn it into a simple, logical, clearly written story. It will still not be a good one. The major fault of eighty-five to ninety-five percent of all fiction is that it is banal and dull.

Now old stories can always be told with new language. You can even add new characters to them; you can use them to dramatize new ideas. But eventually even the new language, characters, and ideas lose their ability to invigorate.

Either in content or in style, in subject matter or in rhetorical approach, fiction that is too much like other fiction is bad by definition. However paradoxical it sounds, good writing as a set of strictures (that is, when the writing is good and nothing more) produces most bad fiction. On one level or another, the realization of this is finally what turns most writers away from writing.
  
Talented writing is, however, something else. You need talent to write fiction.

Good writing is clear. Talented writing is energetic. Good writing avoids errors. Talented writing makes things happen in the reader’s mind — vividly, forcefully — that good writing, which stops with clarity and logic, doesn’t.



segunda-feira, 16 de março de 2015

Escrever



Dica de Antonio Prata


"Quando quero criar um personagem estranho, descrevo um dos meus amigos. Quando quero criar um personagem mais estranho, recorro ao Guia de medicina ambulatorial e hospitalar da Unifesp/ Escola Paulista de Medicina -- Psiquiatria; um instrumento que todo escritor deveria ter. Síndromes, transtornos, psicoses, enfim, todos aqueles comportamentos que Nelson Rodrigues chamaria de “taras” ou “manias” aparecem ali, classificados e explicados pelos doutores."


VIA

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Escrever






Dica de Mário Prata:

"Como não poderia deixar de fazer, pedi dicas para escrever um futuro romance. “Quer escrever um romance? Leia livros policiais. Romance é ação e é nos bons romances policiais que está a ação. Vou passar pra você uma lista de bons livros do gênero para você poder ler e aprender com os mestres”, respondeu em tom professoral. Depois, desabafou: “Vivo insistindo para o meu filho ler os policiais, mas ele só quer saber desses intelectuais. Puxa vida! Lendo intelectuais, ele pode até seguir uma carreira acadêmica ou se tornar um cronista cada vez melhor, mas tem que ler os policiais. Eu digo isso a ele, mas o Antonio não me ouve. É incrível: o Antonio não me ouve.” Como se estivesse dando uma bronca no filho por nosso intermédio arrematou: “O único intelectual que se tornou um bom romancista é o Umberto Eco. E vocês sabem porque? Ele é fanático em literatura policial.” Com isso, deu o caso por encerrado."

VIA

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Escrever


Julio Cortázar.

Eu tenho esse texto no Último Round (Civilização Brasileira). Mas - por desencargo - decidi espiar no Google, verificar se alguém já não o teria postado antes. E não é que achei? A versão dele é um pouco diferente (Outra editora, outro tradutor, outra edição, sem epígrafe...), mas tá valendo. Pois é, dá-lhe preguiça. Mas esse blog é pretende ser mais pasta "pública" de recortes do que algo mais sério. Veio daqui: Oficina de Textos e Contos



Do conto breve e seus arredores




Certa vez Horacio Quiroga tentou um decálogo do perfeito contista, que desde o título vale já como uma piscada de olho para o leitor. Se nove dos preceitos são consideravelmente prescindíveis, o último parece-me de uma lucidez impecável: “Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não há outro modo para obter a vida no conto”.

A noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao conselho, ao definir a forma fechada do conto, o que já noutra ocasião chamei de esfericidade; mas a essa noção se soma outra igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido uma das personagens, vale dizer que a situação narrativa em si deve nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior para o exterior, sem que os limites da narrativa se vejam traçados como quem modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, o sentimento da esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever o conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz precisamente a perfeição da forma esférica.

Estou falando do conto contemporâneo, digamos o que nasce com Edgar Allan Poe, e que se propõe como máquina infalível destinada a cumprir sua missão narrativa com a máxima economia de meios; precisamente, a diferença entre o conto e o que os franceses chamam nouvelle e os anglo-saxões long short story se baseia na implacável corrida contra o relógio que é um conto plenamente realizado: basta pensar em The Cask of Amontillado, Bliss, Las ruínas circulares e The Killers (Poe, Katherine Mansfield, Jorge Luís Borges e Ernest Hemingway). Isto não quer dizer que contos mais extensos não possam ser igualmente perfeitos, mas me parece óbvio que as narrações arquetípicas dos últimos cem anos nasceram de uma impiedosa eliminação de todos os elementos privativos da nouvelle e do romance, os exórdios, os circunlóquios, desenvolvimentos e demais recursos narrativos; se um conto longo de Henry James ou D. H. Lawrence pode ser considerado tão genial como aqueles, será preciso convir que estes autores trabalharam com uma abertura temática e lingüística que de algum modo lhes facilitava o trabalho, enquanto que o sempre assombroso dos contos contra o relógio está no fato de potenciarem vertiginosamente um mínimo de elementos, provando que certas situações ou terrenos narrativos privilegiados podem ser traduzidos numa narrativa de projeções tão vastas como a mais elaborada das nouvelles.

O que segue se baseia parcialmente em experiências pessoais cuja descrição mostrará talvez, digamos a partir do exterior da esfera, algumas das constantes que gravitam num conto deste tipo. Volto ao irmão Quiroga para lembrar que diz: “Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ser uma. A noção de ser uma das personagens se traduz em geral na narrativa em primeira pessoa, que nos situa de roldão num plano interno. Faz muitos anos, em Buenos Aires, Ana María Barrenechea me censurou amistosamente um excesso no uso da primeira pessoa, creio que com relação às narrativas de Las Armas Secretas, embora talvez se tratasse das do Final del juego. Quando lhe fiz ver que havia várias em terceira pessoa, insistiu que não era assim e tive de prová-lo com o livro na mão. Chegamos à hipótese de que talvez a terceira atuasse como uma primeira pessoa disfarçada, e que por isso a memória tendia a homogeneizar monotonamente a série de narrativas do livro.

Nesse momento, ou mais tarde, encontrei uma espécie de explicação pela via contrária, sabendo que quando escrevo um conto busco instintivamente que ele seja de algum modo alheio a mim enquanto demiurgo, que se ponha a viver com uma vida independente, e que o leitor tenha ou possa ter a sensação de que de certo modo está lendo algo que nasceu por si mesmo, em si mesmo e até de si mesmo, em todo caso com a mediação mas jamais com a presença manifesta do demiurgo. Lembrei que sempre me irritaram as narrativas onde as personagens têm de ficar como que à margem, enquanto o narrador explica por sua conta (embora essa conta seja a mera explicação e não suponha interferência demiúrgica) detalhes ou passagens de uma situação a outra. O indício de um grande conto está para mim no que poderíamos chamar a sua autarquia, o fato de que a narrativa se tenha desprendido do autor como uma bolha de sabão do pito de gesso. Embora pareça paradoxal, a narração em primeira pessoa constitui a mais fácil e talvez melhor solução do problema, porque narração e ação são aí uma coisa só. Inclusiva quando se fala de terceiros, quem o faz é parte da ação, está na borbulha e não no pito. Talvez por isso, nas minhas narrativas em terceira pessoa, procurei quase sempre não sair de uma narração stricto sensu, sem essas tomadas de distância que equivalem a um juízo sob, e o que está acontecendo. Parece-me uma vaidade querer intervir num conto com algo mais que com o conto em si.

Isto leva necessariamente à questão da técnica narrativa, entendendo por isto o especial enlace em que se situam o narrador e o narrado. Pessoalmente sempre considerei esse enlace como uma polarização, isto é, se existe a óbvia ponte de uma linguagem indo e de uma vontade de expressão à própria expressão, ao mesmo tempo essa ponte me separa, como escritor, do conto como coisa escrita, a ponto de a narrativa ficar sempre, após a última palavra, na margem oposta. Um verso admirável de Pablo Neruda: Mis criaturas nacen de um largo rechazo [Minhas criaturas nascem de um longo rechaço] parece-me a melhor definição de um processo em que o escrever é de algum modo exorcizar, repelir criaturas invasoras, projetando-as a uma condição que paradoxalmente lhes dá existência universal ao mesmo tempo que as situa no outro extremo da ponte, onde já não está o narrador que soltou a bolha do seu pito de gesso. Talvez seja um exagero afirmar que todo conto breve plenamente realizado, e em especial os contos fantásticos, são produtos neuróticos, pesadelos ou alucinações neutralizadas mediante a objetivação e a transladação a um meio exterior ao terreno neurótico; de toda forma, em qualquer conto breve memorável se percebe essa polarização, como se o autor tivesse querido desprender-se o quanto antes possível e da maneira mais absoluta da sua criatura, exorcizando-a do único modo que lhe é dado fazê-lo: escrevendo-a.

Este traço comum não seria conseguido sem as condições e a atmosfera que acompanha o exorcismo. Pretender livrar-se de criaturas obsedantes à base de mera técnica narrativa pode talvez dar um conto, mas faltando a polarização essencial, a rejeição catártica, o resultado literário será precisamente isso, literário: faltará ao conto a atmosfera que nenhuma análise estilística conseguiria explicar, a aura que pervive na narrativa e possuirá o leitor como havia possuído, no outro extremo da ponte, o autor. Um contista eficaz pode escrever narrativas literariamente válidas, mas se alguma vez tiver passado pela experiência de se livrar de um conto como quem tira de cima de si um bicho, saberá a diferença que há entre possessão e cozinha literária, e por sua vez um bom leitor de contos distinguirá infalivelmente o que vem de um território indefinível e ominoso, e o produto de um mero métier. Talvez o traço diferencial mais marcante — já o assinalei em outro lugar — seja a tensão interna da trama narrativa. De um modo que nenhuma técnica narrativa poderia ensinar ou prover, o grande conto breve condensa a obsessão do bicho, é uma presença alucinante que se instala desde as primeiras frases para fascinar o leitor, fazê-lo perder contato com a desbotada realidade que o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais intensa e avassaladora. De um conto assim se sai como de um ato de amor, esgotado e fora do mundo circundante, ao qual se volta pouco a pouco com um olhar de surpresa, de lento reconhecimento, muitas vezes de alívio e tantas outras de resignação. O homem que escreveu esse conto passou por uma experiência ainda mais extenuante, porque de sua capacidade de transvasar a obsessão dependia o regresso a condições mais toleráveis; e a tensão do conto nasceu dessa eliminação fulgurante de idéias intermédias, de etapas preparatórias, de toda a retórica literária deliberada, uma vez que estava em jogo uma operação de algum modo fatal que não tolerava perda de tempo; estava ali, e só um tapa podia arrancá-la do pescoço ou da cara. Em todo caso assim me tocou escrever muitos de meus contos; inclusive em alguns, relativamente longos, como Las armas secretas, a angústia onipresente ao longo de um dia todo me obrigou a trabalhar obstinadamente até terminar a narrativa e só então, sem cuidar de relê-lo, descer à rua e caminhar por mim mesmo, sem ser já Pierre, sem ser já Michèle.

Isto permite assegurar que certa gama de contos nasce de um estado de transe, anormal para os cânones da normalidade corrente, e que o autor os escreve enquanto está no que os franceses chamam um état seconde. Que Poe tenha realizado suas melhores narrativas nesse estado — paradoxalmente reserva a frieza racional para a poesia, pelo menos na intenção — prova-o aquém de toda evidência testemunhal o efeito traumático, contagioso e para alguns diabólico de O Coração delator ou de Berenice. Não faltará quem julgue que exagero esta noção de um estado ex-orbitado como o único terreno onde possa nascer um grande conto breve; farei ver que me refiro a narrativas onde o próprio tema contém a “anormalidade”, como os citados de Poe, e que me baseio em minha própria experiência toda vez que me vi obrigado a escrever um conto para evitar algo muito pior. Como descrever a atmosfera que antecede e envolve o ato de escrevê-lo? Se Poe tivesse tido ocasião de falar disso, estas páginas não seriam tentadas, mas ele calou esse círculo do seu inferno e se limitou a convertê-lo em O gato preto ou em Ligéia. Não sei de outros testemunhos que possam ajudar a compreender o processo desencadeador e condicionador de um conto breve digno de lembrança; apelo então para a minha própria situação de contista e vejo um homem relativamente feliz e cotidiano, envolto nas mesmas insignificâncias e dentistas de todo habitante de cidade grande, que lê o jornal e se enamora e vai ao teatro e que de repente, instantaneamente, numa viagem de metrô, num café, num sonho, no escritório enquanto revisa uma tradução duvidosa acerca do analfabetismo na Tanzânia, deixa de ser ele-e-sua-circunstância e sem razão alguma, sem aviso prévio, sem a aura dos epilépticos, sem a crispação que precede as grandes enxaquecas, sem nada que lhe dê tempo para apertar os dentes e respirar fundo, é um conto, uma massa informe sem palavras nem rostos, nem princípio nem fim, mas já um conto, algo que somente pode ser um conto e, além disso, em seguida, imediatamente, Tanzânia pode ir para o diabo porque este homem porá uma folha de papel na máquina e começará a escrever, embora seus chefes e as Nações Unidas em cheio lhe caiam nos ouvidos, embora a sua mulher chame porque a sopa está esfriando, embora ocorram coisas tremendas no mundo e seja preciso escutar as estações de rádio ou tomar banho ou telefonar para os amigos. Lembro-me de uma citação curiosa, creio que de Roger Fry; um menino precocemente dotado para o desenho explicava seu método de composição dizendo: First I think then I draw a line round my think (sic) [primeiro eu penso depois eu desenho uma linha em volta do meu penso (sic)]. No caso destes contos sucede exatamente o contrário: a linha verbal que os desenhará começa sem nenhum think prévio, há como que um enorme coágulo, um bloco total que já é o conto, isso é claríssimo embora nada possa parecer mais obscuro, e precisamente nisso reside a espécie de analogia onírica de signo inverso que há na composição de tais contos, visto que todos nós sonhamos coisas meridianamente claras que, uma vez despertos, eram um coágulo informe, uma massa sem sentido. Sonhamos despertos ao escrever um conto breve? Os limites entre o sonho e a vigília já sabemos: basta perguntar ao filósofo chinês ou à borboleta[1]. De qualquer maneira, se a analogia é evidente, a relação é de signo inverso pelo menos no meu caso, visto que parto do bloco informe e escrevo algo que só então se converte num conto coerente e válido per se. A memória, traumatizada sem dúvida por uma experiência vertiginosa, guarda em detalhes as sensações desses momentos, escrever um conto assim é simultaneamente terrível e maravilhoso, há um desespero exaltante, uma exaltação desesperada; é agora ou nunca, e o temor de que possa ser nunca exacerba o agora, torna-o máquina de escrever correndo a todo o teclado, esquecimento da circunstância, abolição do circundante. E então a massa negra se aclara à medida em que se avança, incrivelmente as coisas são de uma extrema facilidade, como se o conto já estivesse escrito com uma tinta simpática e a gente passasse por cima o pincelzinho que o desperta. Escrever um conto assim não dá nenhum trabalho, absolutamente nenhum; tudo ocorreu antes e esse antes, que aconteceu num plano onde “a sinfonia se agita na profundeza” para dizê-lo com Rimbaud, é o que provocou a obsessão, o coágulo abominável que era preciso arrancar em tiras de palavras. E pó isso, porque tudo está decidido numa região que diuturnamente me é alheia, nem sequer o remate do conto apresenta problemas, sei que posso escrever sem me deter, vendo apresentar-se e suceder-se os episódios, e que o desenlace está tão incluído no coágolo inicial como o ponto de partida. Lembro-me da manhã que me caiu em cima Una flor amarilla : o bloco amorfo era a noção do homem que encontra um garoto que se parece com ele e tem a deslumbradora intuição de que somos imortais. Escrevi as primeiras cenas sem a menor vacilação, mas não sabia o que ia ocorrer, ignorava o desenlace da história. Se nesse momento alguém me tivesse interrompido para me dizer: “No final o protagonista vai envenenar Luc”, mas isso chegou como todo o anterior, como a meada que se desnovela à medida que puxamos; a verdade é que em meus contos não há o menor mérito literário, o menor esforço. Se alguns se salvam do esquecimento é porque fui capaz de receber e transmitir sem demasiadas perdas essas latências de uma psique profunda, e o resto é uma certa veteranice para não falsear o mistério, conservá-lo o mais perto possível da sua fonte, com seu tremor original, seu balbucio arquetípico.

O que precede terá posto o leitor na pista: não há diferença genética entre este tipo de contos e a poesia como a entendemos a partir de Baudelaire. Mas se o ato poético me parece uma espécie de magia de segundo grau, tentativa de posse antológica e não já física como na magia propriamente dita, o conto não tem intenções essenciais, não indaga nem transmite um conhecimento ou uma “mensagem”. A gênese do conto e do poema é, contudo, a mesma, nasce de um repentino estranhamento de um deslocar-se que altera o regime “normal” da consciência; num tempo em que as etiquetas e os gêneros cedem a uma estrepitosa bancarrota, não é inútil insistir nessa afinidade que muitos acharão fantasiosa. Minha experiência me diz que, de algum modo, um conto breve como os que procurei caracterizar não tem estrutura de prosa. Cada vez que me tocou revisar a tradução de uma de minhas narrativas (ou de tentar a de outros autores, como alguma vez com Poe) senti até que ponto a eficácia e o sentido do conto dependiam desses valores que dão um caráter específico ao poema e também ao jazz: a tensão;o ritmo; a pulsação interna; o imprevisto dentro de parâmetros ptré-vistos… essa liberdade fatal  que não admite alteração sem uma perda irreparável. Os contos dessa espécie incorporam-se como cicatrizes indeléveis em todo leitor que os mereça: são criaturas vivas, organismos completos, ciclos fechados, e respiram.  Eles respiram, não o narrador, à semelhança dos poemas perduráveis e à diferença de toda prosa encaminhada para transmitir a respiração do narrador, para comunicá-la à maneira de um telefone de palavras. E se perguntarem: Mas então, não há comunicação entre o poeta (contista) e o leitor?, a resposta será óbvia: A comunicação se opera a partir  do poema ou do contista, não por meio deles. E essa comunicação é a que tenta o prosador, de telefone a telefone; o poeta e o narrador urdem criaturas autônomas, objetos de conduta imprevisível, e suas conseqüências ocasionais nos leitores não se diferenciam essencialmente das que têm para o autor, o primeiro a se surpreender com a sua criação, leitor sobressaltado de si mesmo.

Breve coda sobre os contos fantásticos. Primeira observação: o fantástico como nostalgia. Toda suspension of disbelief [suspensão da incredulidade] atua como uma trégua no seco, implacável assédio que o determinismo faz ao homem. Nessa trégua, a nostalgia introduz uma variante na afirmação de Ortega: há homens que em algum momento cessam de ser eles e sua circunstância, há uma hora em que desejamos ser nós mesmos e o inesperado, nós mesmos e o momento em que a porta que antes e depois dá para o saguão se abre lentamente para nos deixar ver o prado onde relincha o unicórnio.

Segunda observação: o fantástico exige um desenvolvimento temporal ordinário. Sua irrupção altera instantaneamente o presente, mas a porta que dá para o saguão foi e será a mesma no passado e no futuro. Só a alteração momentânea dentro da regularidade delata o fantástico, mas é necessário que o excepcional passe a ser também a regra sem deslocar as estruturas ordinárias entre as quais se inseriu. Descobrir numa nuvem o perfil de Beethoven seria inquietante se durasse dez segundos antes de se desfiar e tornar-se fragata ou pomba; o caráter fantástico só se afirmaria no caso de ali continuar o perfil de Beethoven enquanto o resto das nuvens se conduzisse com sua desintencional desordem sempiterna. Na má literatura fantástica, os perfis sobrenaturais costumam ser introduzidos como cunhas instantâneas e efêmeras na sólida massa do habitual; assim, uma senhora que foi premiada com o ódio minucioso do leitor é meritoriamente estrangulada no último minuto graças à mão fantasmal que entra pela chaminé e se vai pela janela sem maiores rodeios, além do que nesses casos o autor se vê obrigado a prover uma “explicação” à base de antepassados ou maléficos malaios. Acrescento que a pior literatura deste gênero é, contudo, a que opta pelo procedimento inverso, isto é, o deslocamento do tempo ordinário por uma espécie de full-time do fantástico, invadindo a quase totalidade do cenário com grande espalhafato de espetáculo sobrenatural, como no batido modelo da casa mal-assombrada onde tudo ressumbra manifestações insólitas, desde que o protagonista faz soar a aldrava das primeiras frases até a janela do sótão onde culmina espasmodicamente a narrativa. Nos dois extremos — insuficiente instalação num ambiente comum, e rejeição quase total deste último — peca-se por impermeabilidade, trabalha-se com materiais heterogêneos momentaneamente vinculados, mas nos quais não há osmose, articulação convincente. O bom leitor sente que nada têm que fazer aí essa mão estranguladora ou esse cavalheiro que em consequência de uma aposta se instala para passar a noite numa tétrica morada. Este tipo de contos que infesta as antologias do gênero lembra a receita de Edward Lear para fabricar um pastel cujo glorioso nome esqueci: pega-se um porco, ata-se o bicho a uma estaca e bate-se nele violentamente, enquanto em outra parte se prepara com diversos ingredientes a massa cujo cozimento só se interrompe para continuar espancando o porco. Se ao cabo de três dias não se tiver conseguido que a massa e o porco formem um todo homogêneo, pode-se considerar que o pastel é um fracasso, em virtude do que se soltará o porco e se atirará a massa ao lixo. É precisamente isso que fazemos com os contos em que não há osmose, onde o fantástico e o habitual se justapõem sem que nasça o pastel que esperávamos comer estremecidamente.

( CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.  227-237)

[1] Referência à anedota de Chuang Tzu, filósofo chinês do séc. III a. C., incluída por Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares em sua Antologia da literatura fantástica. Buenos Aires: Sudamericana, 1940.